Qual
o rosto da classe trabalhadora brasileira?
“O lulismo existe sob o signo da contradição.
Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo
movimento. É o caráter ambíguo de um movimento que torna difícil a sua
interpretação.” Assim o grande sociólogo André Singer começa seu último livro, “Os
sentidos do lulismo – reforma gradual e pacto conservador”.
De fato a análise de um fenômeno
absolutamente sui generis, e
inteiramente novo não é uma tarefa fácil, mas, com muita elaboração teórica e
análise minuciosa estatística André Singer consegue fazer com que saibamos qual
é o chão em que estamos pisando no cenário político atual.
André Singer identifica que a maior
parcela da classe trabalhadora brasileira se encontram tão precarizadas que
vivem em condições que lhe dão um status
abaixo do proletariado, isto é, o subproletariado, historicamente conservador,
contrário às greves – conforme estatísticas mostradas, eleitoralmente ligado à
ARENA, ao PDS, ao PFL, enfim, ao coronelismo, sendo a classe que em 1989 deu a
vitória a Collor, isto é, à direita. O proletariado e o subproletariado nunca
jogaram no mesmo time.
Diferente do proletariado, o
subproletariado não tem um projeto histórico. Quer sair da pobreza, mas também
quer “manutenção da ordem” (reforma gradual e pacto conservador – aqui entendemos
que o subtítulo não é aleatório).
Após um elaborado e muito interessante
debate teórico, defende a tese de que o que houve no Brasil foi um realinhamento
eleitoral, isto é, o projeto lulista foi capaz de fazer com que a “nossa questão
setentrional” (paráfrase de Gramsci e a questão Meridional) fosse superada,
isto é, o subproletariado rompeu ideologicamente com o coronelismo.
O lulismo, então, entra na cena
política enquanto tal a partir das eleições de 2006, quando, beneficiada pelas
políticas sociais que – dentro dos limites do capitalismo, reduziram a pobreza
(mas nem tanto a desigualdade) e com a expansão de crédito, essa parcela
decisiva da classe trabalhadora opta pelo lulismo, ao passo que a classe média,
principalmente pela questão do mensalão, passa ao campo mais à direita
política, do PSDB e DEM.
A polarização, porém, deixa de ser
entre esquerda e direita, para se tornar entre ricos e pobres.
Duas almas
O processo de transformismo do PT também é
trabalhado por Singer, afinal de contas sem o PT Lula não seria Lula, e o PT
não seria PT sem Lula.
O PT não adere de imediato ao
lulismo.
A primeira alma do PT, o “espírito
do Sion”, é o daquele partido que foi fundado no Colégio Sion, com corte
claramente socialista, visando uma ruptura radical, fazendo a crítica do
populismo, do sindicalismo de resultados e da dificuldade teórica da esquerda “tradicional”,
por assim dizer, embora o termo seja péssimo, em interpretar o Brasil.
A segunda alma, a do “espírito do
Anhembi” – referência à apresentação da “carta aos brasileiros”, endereçada ao
grande capital em 2002, com o intuito de acalmar o grande capital, amedrontado
com a hipótese de Lula ganhar as eleições, tendo sido dado o recado de que “o radicalismo
petista tinha sido, no mínimo, suspenso”, em termos próprios, diferentemente do
caso da social-democracia alemã, cujo confronto entre as alas da direita e da
esquerda do Partido foi lento e arrastado.
Entretanto, essas “duas almas”,
convivem dentro do partido, não sendo exclusivas entre si.
É interessante quando Singer usa uma
tabela que demonstra como até 2002 os votos no PT entre as classes média e alta
é concentrado, ao passo de que havia um decréscimo considerável nas classes
baixas e como isso se altera a partir das eleições de 2006.
Uma agenda que vai longe...
A grande questão política que Singer
coloca é a de que o grande desafio brasileiro é a redução da pobreza. Neste
ponto, se a oposição neoliberal quiser voltar a governar terá de se adaptar a
essa agenda, cujo cerne são os programas de transferência de renda e expansão
do crédito.
E de fato, o “macaco velho” José
Serra (PSDB – SP) percebeu isso nas eleições de 2010, ao contrário de Alckmin
em 2006, e prometeu não só manter o Bolsa Família (o principal programa de
transferência de renda), como também prometeu um incremento, um “13º”, o que
pareceu ao eleitorado (e aqui digo por mim) pura demagogia.
Se por um lado a pobreza monetária
cai rapidamente (voltando ao que éramos no começo da década de 1960), por outro
lado a desigualdade se cai é quase que a um valor irrisório. Lula soube como poucos
agradar ao grande capital, principalmente com a questão cambial e a questão dos
juros (no fim das contas, o homem da direita escolhido para ser o vice de Lula,
José de Alencar, se pôs à sua esquerda, pedindo a redução dos juros).
Reformismo fraco?
Entretanto, há mudanças. Há – e isso
é muito importante, uma reconfiguração em curso da classe trabalhadora. O
subproletariado está se incorporando ao mercado de trabalho, há, segundo outros
especialistas, e Singer considera tal interpretação, a criação de um “novo
proletariado”. Resta saber se o “antigo proletariado” será suficientemente
forte para incorporar a outra fracção ao seu projeto histórico. A futurologia
dos analistas citados pensa que não.
A dependência das commodities e a preferência do modelo
lulista pelo agronegócio, da maneira como vem sendo praticado, ao invés da
reforma agrária, causam repugnância na esquerda. O “reformismo forte” (que era
o do PT) fracassou enquanto atualidade histórica no Brasil, mas não
completamente, pois deu à Constituição de 1988 seu corte progressista, embora
ela não seja cumprida.
“Se o reformismo fraco é lento
quando observado desde o ângulo da totalidade, talvez pareça rápido quando
visto do ângulo do subproletariado, sobretudo do nordestino”. E essa é uma
questão fundamental, principalmente para a esquerda brasileira nessa atual fase
difícil.
Singer, logo no começo se questiona
se o lulismo será competente o suficiente para abrir um caminho que permitirá
colocar as contradições do capitalismo brasileiro em patamar superior.
De
agora em diante falo por mim. Quanto mais lemos o livro mais nos encontramos
diante de um labirinto. A configuração de classe do governo Lula, e
consequentemente Dilma, é contraditória. Existe uma parcela considerável da
classe trabalhadora na base, assim como do grande capital, respectivamente uma
parcela “produtivista” (ameaçada pela desindustrialização do país e que começa
a dar sinais de desconfiança) e outra “rentista”.
Se a esquerda quiser recuperar o
centro (não no mal sentido) da arena política, deve ter em mente o atual
projeto histórico dessa parcela significativa da classe trabalhadora
brasileira. Não penso que o jogo está perdido. Apenas que estamos batendo
cabeça no meio-de-campo, precisamos acertar o toque de bola, mas isso só é
possível com um diagnóstico preciso da atual situação. Criticar apenas a
direção é mais fácil, mas é também incompleto. Penso que o livro de Singer é uma
radiografia do modelo atual, lembrando Nélson Werneck Sodré, muito bem feita.
É
evidente que não tenho capacidade de evidenciar em poucas e breves linhas a
estupenda qualidade do livro, o que pretendo aqui é despertar a curiosidade
para essa agradável e necessária leitura, agradável para os amantes das
Ciências Sociais e necessária para todos aqueles que pretendem a transformação
da sociedade.
Um comentário:
Fiquei interessada pela leitura... pena que eu não consigo ler muita coisa ultimamente... seus comentários são pertinentes e vc faz as ressalvas necessárias. : )
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