Lukács
não podia estar mais certo quando escreveu em 1922, no prefácio do livro História e Consciência de Classe, que o
“peso dominante” de Lênin “como político oculta hoje para muitos o papel que
teve como teórico”. E de fato, isso é
dominante, em boa medida, até hoje nos círculos pretensamente comunistas, pois
aos estalinistas vale mais divulgar as divergências com Trotsky pré-1917, do
que discutir a atualidade do capitalismo monopolista.
Florestan Fernandes
ressalta – na introdução da coleção “Grandes Cientistas Sociais”, que, após a
tomada do poder, “leninismo” virou o mesmo que “seguidor de Lênin”, o que
somado à ironia de Nélson Werneck Sodré, de que ainda não inventaram um
“marxímetro”, torna esses debates um pouco uma disputa de egos. Aliás, essa
introdução é muito rica, sendo uma leitura muito importante.
Além
disso, Lênin também manteve a coerência quando alertou a social-democracia do
quão problemático era o apoio àquilo que ficaria conhecida como Primeira Guerra
Mundial, uma guerra imperialista, cujo saldo conhecemos bem. Matança entre
irmãos de classe, ascensão de regimes fascistas, repressão à classe
trabalhadora e uma total capitulação da social-democracia ao capitalismo.
O fato é o
de que Lênin foi também, além de grande dirigente, um grande teórico, levando à
risca a ortodoxia marxista, no sentido lukacsiano
do termo, foi um pensador claramente inovador do pensamento marxista, do
contrário, teria prevalecido a corrente social-democrata economicista e o curso
da história não seria o mesmo. Não há, como ressalta Florestan Fernandes, ao
saldar o Lênin “acadêmico”, nenhuma intenção em despolitizá-lo, pois isso seria
impossível, sobretudo para quem faz a análise concreta de situações concretas
e, afinal de contas, sem o profundo conhecimento que tinha sobre a Rússia e o
minucioso estudo dos textos de Marx e Engels, Lênin jamais teria tomado
decisões políticas certas, ao lado dos revolucionários de Outubro. Gramsci
exaltaria a maior contribuição de Illitch à Filosofia da práxis, a hegemonia.
Uma
interessante inovação no seio do marxismo introduzida por Lênin é a luta em
duas frentes, isto é, uma legal – o que hoje é tido por muitos esquerdistas, já
que estamos falando de Lênin, como um “desvio”, ou reformismo puro, e outra
clandestina, no contexto de uma Rússia semifeudal, com um governo despótico, em
que era impossível organizar um partido de massas. O esquerdismo é apenas uma
“doença infantil do comunismo”, dessa forma, o mito da “vontade política”, uma
entidade evocada por muitos setores da esquerda, dá lugar a uma teoria do poder,
da necessidade da tomada do poder como a única forma possível de transformar a
sociedade.
Lênin
se defronta com o problema do desenvolvimento desigual ocasionado pelo
imperialismo. Como coloca José Paulo Netto em “O que é marxismo?”, os marxistas se defrontaram com essas “tarefas
positivas” (de construção) de organizar a economia e a sociedade de um país
subdesenvolvido e arrasado pela guerra. Não bastava mais apenas a crítica da
sociedade burguesa. A Rússia tzarista era radicalmente distinta da Europa
ocidental, dessa forma, o socialismo teria ali um caráter diferente. As
categorias da “via clássica” e da “via prussiana”, esta última, segundo Carlos
Nelson Coutinho, sendo uma realidade no Brasil e Lênin é um pioneiro neste
sentido, o que faz dele um transformador do marxismo, pensando as formações
sociais a partir de reformas vindas de cima para baixo (revolução passiva), com
acordos entre setores das classes dominantes eventualmente em desacordo. Como
coloca Gramsci, uma determinar uma hierarquia entre Marx e Lênin não tem
sentido.
As
categorias de Lênin nos chamam atenção para o fato de que as revoluções nos
países “atrasados” ou serão socialistas, ou não serão. No nosso caso
latino-americano, já se mostrou que a burguesia é dependente do imperialismo,
assim como naquela Rússia de 1917, portanto não é progressista, e o golpe
civil-militar de 1964 rompeu com o último suspiro de quem se iludiu com a
inexistente “burguesia nacional” e as tarefas democráticas terão de ser
resolvidas no seio da revolução proletária e já em sentido socialista.
Segundo
Charles Wright Mills em “Os marxistas”,
uma excelente antologia do marxismo após Marx, a despeito da leitura bastante
enviesada de alguns pontos, a morte de Lênin, o fracasso das revoluções na
Europa Ocidental e a expulsão de Trotsky em 1929 da Rússia, são os três fatos
que marcam o fim do bolchevismo original. A consolidação estalinista levou a um
pragmatismo político e intelectual, isto é adaptação das Ciências Sociais e da
Economia às “conveniências do dia-a-dia”, o que ocasionou um período em que não
se desenvolveu a teoria marxista, e o que se desenvolveu como ponto fora da
curva era rapidamente apontado como “desvio”. Se há algo pelo qual Lênin não é
responsável, é por aquilo que se convencionou chamar de “marxismo-leninismo”,
um esquema dogmático e empoeirado do bloco soviético que impediu o desenvolvimento
da teoria revolucionária, pois isso não tem nada de marxiano e muito menos
leniniano.
No dia
21/01/1924, falecia este grande pensador, cujo vasto legado só temos a
agradecer. Termino deixando uma música do chileno Patricio Manns em homenagem a
1917.
1917 (Patricio Manns)
A bordo del pasado yo atravesé la tierra,los mares solitarios, la vastedad salvaje,
un crepúsculo en llamas, los glaciares perfectos,
la dentellada pura del vendaval marítimo,
hasta San Petersburgo, para encontrar a Lenin.
Aquí caminó alzando su expresivo vocablo,
rehizo muchas veces sus múltiples destierros,
palpó el severo musgo de las cadenas muertas
y construyó en su mesa las luces aurorales,
los fértiles racimos de octubre, fértilmente.
El orgulloso visionario,
el gran demiurgo del corazón soviético,
el hondo capitán llamado
a restaurar el orden de la vida,
paciente como una semilla
se propagó sobre el tiempo y la memoria,
se hizo alfabeto orgánico y rebelde,
acrisoló los hornos del deber.
Con él se despertó su pueblo
llenando de altos martillos la mañana.
El trueno rojo de los cantos
se alzó radiante entre ráfagas de nieve.
Y un mar de mástiles ardiendo
hizo estandarte el fuego que rugía,
hizo constante el peso de la aurora,
estableció las leyes del futuro.
Pueblo es la tierra, pueblo la semilla,
pueblo el agua, la siembra,
el viento y el molino;
pueblo es la letra, pueblo la ventana,
la cosecha, la espuela,
el canto y la palabra,
y suyos son los combates,
suyos los deberes
y el derecho incesante de alumbrar la tierra
con el incendio de sus cárceles.
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