quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Althusser e a renovação filosófica do stalinismo - DE ALVARO BIANCHI

Reproduzo o texto do blog: http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=488


Louis Althusser está de volta? O autor dispensaria apresentações. Como poucos de sua geração marcou a conformação do campo intelectual francês e fez sentir sua forte influência na Inglaterra, Itália, Estados Unidos e América Latina. Sua obra, fortemente marcada pela polêmica, gerou reações antagônicas, despertou simpatias e antipatias, organizou adeptos e opositores, motivou a apropriação acrítica e a crítica inapropriada. Inserindo sua obra explicitamente na conjuntura política de sua época, Althusser exigiu nos anos 1960 e 1970 uma apaixonada tomada de partido.
Passados mais de 20 anos de sua morte outro Althusser reaparece. Menos apaixonante, é verdade, mas filosoficamente mais complexo. Imediatamente depois de seu desaparecimento teve início na França um importante movimento de resgate da obra de Althusser e de edição póstuma de suas obras, em grande parte inédita e localizada nos arquivos do Institut Mémoires de l’Édition Contemporaine (Imec). Já em 1992 foi publicada uma primeira edição de sua autobiografia, a qual alcançou um estrondoso sucesso editorial (ALTHUSSER, 1994). Seguiu-se a publicação dos escritos sobre a psicanálise de seu diário da prisão, redigido durante seu cativeiro na Segunda Guerra Mundial e de escritos filosóficos e políticos (ALTHUSSER, 1993 e 1994a e 1997), além de novas edições de Pour Marx e Lire Le Capital.[1]
É possível ter agora uma idéia mais abrangente da complexidade da obra althusseriana, de seus diferentes momentos e de suas múltiplas dimensões. O conhecimento agora possível é certamente crítico, como todo conhecimento efetivo, mas trata-se de uma crítica serena e rigorosa cujo único parti pris é o estudo aprofundado de sua obra e de seu contexto. Os novos textos que estão à disposição permitem abordar de modo mais circunstanciado as relações entre filosofia/política, filosofia/filosofia política, esclarecendo a profunda tensão interna existente no pensamento de Althusser a respeito dessas relações.
A relação era tensa, como já foi dito, mas o próprio filósofo da rue d’Ulm se encarregou de evidenciar essa tensão em mais de uma oportunidade. A tensão já estava posta na forte distinção entre prática teoria e prática política que foi feita  em Pour Marx. O conceito de prática sobre o qual se base essa distinção era, entretanto, um só. Recorrendo a O capital, e particularmente a sua seção IV, embora não a citasse nesse ponto, Althusser definia prática como “todo processo de transformação de uma determinada matéria-prima dada em um produto determinado, transformação efetuada por um determinado trabalho humano, utilizando meios (‘de produção’) determinados.” (1979, p. 144). Esse conceito abrangente de prática lhe permitia afirmar uma certa unidade entre prática teórica e prática política concebidas como partes integrantes do conjunto do processo de transformação social, ou seja, como partes de uma mesma prática social.
Mas aquilo que era reunido conceitualmente não se encontrava unificado concretamente. O conceito de teoria e de prática teórica que era a seguir apresentado por Althusser dificultava em grande medida essa unificação. Por teoria, o filósofo da rue d’Ulm  entendia “uma forma específica da prática” (idem, p. 144) e, particularmente, uma “prática teórica científica” (idem, p. 145). Mas para chegar ao ponto no qual pretendia se viu obrigado a estratificar a prática teórica. Desse modo, ele distingue: 1) a “teoria”, as diferentes práticas que comporiam uma ciência, com seus conceitos, enunciados e leis; e 2) a Teoria, “a teoria geral, isto é, a  Teoria da prática em geral, que transforma em ‘conhecimentos’ (verdades científicas), o produto ideológico da práticas ‘empíricas’ (a atividade concreta dos homens) existentes”. A Teoria seria, desse modo, “a dialética materialista que não constitui mais do que um só todo com o materialismo dialético.” (Idem, p. 145.)
Estabelecer a relação entre teoria e prática era, então, em primeiro lugar, estabelecer a relação entre teoria e Teoria, ou seja, entre um sistema teórico dado, como por exemplo, o materialismo histórico, e o sistema metateórico que lhe permitiria chegar ao conceito de sua própria prática:
“É nesse duplo sentido que a teoria importa à prática. A ‘teoria’ importa à sua própria prática, diretamente. Mas a relação de uma ‘teoria’ com sua prática, na medida em que está em causa, interessa também, com a condição de ser refletida e enunciada, à própria Teoria geral (a dialética), onde se exprime teoricamente a essência da prática em geral, e através desta a essência das transformações, do ‘devir’ das coisas em geral.” (idem, p. 146.)
Mas em que sentido a prática importaria à teoria ou à Teoria? Qual é o efeito da luta de classes sobre o “conhecimento verdadeiro”. Sobre esse efeito, da maior importância tanto para a teoria como para a prática, nada é dito. Segundo Althusser, Lenin em Que fazer? ao afirmar que “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário” teria não apenas lembrado à prática política a necessidade da teoria, ou seja, da análise da formação social russa, como também, enunciado a necessidade para a teoria da Teoria.[2] De fato, Lenin nos textos que escreveu em polêmica com o populista Nicolai Mikhailovski, afirmou que “os marxistas tomam da teoria de Marx, sem restrições, apenas os métodos mais valiosos, sem os quais uma elucidação das relações sociais é impossível” (LCW, v. 1, p. 194).
Mas, diferentemente de Althusser não havia em Lenin uma separação radical entre o materialismo histórico (teoria) e o materialismo dialético (Teoria), nem esse imperialismo metodológico da Teoria, na qual o filosofo da rue d’Ulm insiste a todo momento, o qual permitiria a esta assumir a função de garantia da “verdade” distinguindo-a precisamente do erro, desde que corretamente aplicada pelo filosofo. Mas por que insistir nessa separação? Ela seria necessária para retirar a Teoria da história: “a filosofia não tem história (no sentido em que a ciência tem uma história)”, afirmava Althusser (1978, p. 44) em sua resposta a John Lewis. A Teoria seria, portanto, opaca ao materialismo histórico.
Althusser sabia, entretanto, que a filosofia não era estranha a luta de classes e nessa mesma resposta insistiu que “a filosofia é, em última instância, luta de classes na teoria” (idem, p. 44). Um crítico mais apressado poderia apontar uma contradição entre as teses que “a luta de classes é o motor da história” e a filosofia é luta de classes e a tese de que a filosofia não tem história. Mas essa contradição não existiria para Althusser. A filosofia não teria história porque lhe seria externa.
A separação entre materialismo histórico e materialismo dialético bloqueavam a possibilidade do materialismo histórico assumir como objeto o materialismo dialético. Nesse ponto, o sofisticado Althusser não estava distante do pragmático Stalin que destacava a distinção entre materialismo histórico e materialismo dialético e na impermeabilidade destes ao próprio materialismo histórico, em um livro de uma espantosa indigência teórica (STALIN, 1982).
Essa proximidade com o diamat staliniano só pode surpreender os mais ingênuos ou desinformados. Althusser aderiu ao Partido Comunista Francês depois da invasão soviética à Hungria, ou seja, quando intelectuais mais lúcidos começavam a abandoná-lo. No partido comportou-se como um hardliner e se em alguns momentos contrapôs-se à ortodoxia o fez sempre em nome da ortodoxia.[3] As recorrentes menções à “ciência marxista-leninista” ou  à “filosofia marxista-leninista” não são cláusulas de segurança para acalmar a burocracia stalinista. Desta, Althusser se apropriou não apenas do jargão mas também de aspectos teóricos centrais e, principalmente, de sua herança política. Assim, enquanto alguns por puro cinismo deixaram de citar o “guia genial dos povos” após o relatório secreto de Nikita Khrushchev e as denúncias dos crimes, Althusser continuou a fazer gala à obra “teórica” de Stalin, considerando-a “em muitos aspectos notáveis”, em Pour Marx (idem, p. 83).
Notável, dentre outras coisas, por ter abolido a “negação da negação” das “leis da dialética”, reivindicou o autor de Pour Marx. Afinal, se “está-se hoje oficialmente convencido” de que se deve censurar o autor de Materialismo histórico e materialismo dialético por tê-la abolido, melhor seria reconhecer que “a expulsão da ‘negação da negação’ do domínio da dialética marxista pode atestar um real discernimento teórico no seu  autor.” (idem, p. 175-176.) E ainda em 1967, em seu escrito inédito sobre a querela do humanismo, Althusser reafirmaria seu juízo em termos ainda mais assombrosos: “Eis por que Stalin pode ser tido por um filósofo marxista extraordinariamente perspicaz, ao menos neste ponto, por ter eliminado a negação da negação das ‘leis’ da dialética.” (1997, v. 2, p. 470. Grifos meus.) “É verdade”, afirma Daniel Benasïd, comentando essa passagem: Stalin preferirá muitas vezes “a negação tout court, sem retorno e sem adjetivos” (BENSAÏD, 2001, p. 108). O termidor como a negação tout court da revolução russa. Extraordinária a perspicácia filosófica desse georgiano que antes de expulsar e abolir a negação da negação, expulsou e aboliu a vida de toda oposição.
Abolição! Expulsão! Que palavras terríveis! Será possível que Althusser não percebesse o significado delas e sua inadequação ao debate filosófico? É certo, o filósofo não tinha muita familiaridade com a prática política. Rancière se aproveitou disso em seu ressentido e mordaz acerto de contas com o antigo mestre (RANCIÈRE, 1974). Mas o filosofo da rue d’Ulm não era, evidentemente, ingenuo, como revela o modo como constrói seu argumento em Pour Marx. “Está-se, hoje, oficialmente convencido…”. Estranho esse sujeito indeterminado. O próprio Althusser havia se assombrado perante o apoio aos intelectuais humanistas que o secretário geral do PCF  Waldeck Rochet lhe havia confessado sem citar nenhum nome: “mas quem são eles?”, perguntou-se Althusser em sua biografia (1994, p. 223). E quem está convencido agora? E mais estranho é esse convencimento “oficial”. Sim, era contra a interpretação dominante no Partido Comunista Francês, que Althusser se voltava e, principalmente, contra alguns dos filósofos oficias: Guy Besse e Roger Garaudy, em primeiro lugar. Melhor seria dizer: “a direção de nosso partido está convencida”. Mas isso não poderia ser dito por um filósofo se ele quisesse permanecer no partido.
Para Althusser, “não existia, agora, objetivamente, nenhuma outra forma de intervenção política possível no partido senão aquela puramente teórica, e mais uma vez, com base na teoria existente ou reconhecida para utilizá-la contra o uso que se fazia no Partido.” (1994, p. 221) O que ele poderia fazer, então, e fez, foi atirar na cara da nova ortodoxia a velha ortodoxia, aquela que o PCF não poderia rejeitar sem negar-se a si próprio. Apoiou-se, assim, em uma “teoria existente”. O argumento, como pode se ver, estava longe de ser ingênuo, mas justamente por isso submetia-se voluntariamente à fria lógica do aparelho: era no campo teórico do stalinismo que Althusser propunha travar essa luta teórica, naquilo que Althusser chamava, candidamente, “nossa história”. Mas que história é essa? O filósofo responde:
“Stalin não pode (…) ser reduzido ao desvio que ligamos a seu nome; nem tampouco o pode por razões ainda mais fortes a III Internacional, que Stalin terminou por dominar após os anos [19]30. Ele teve outros méritos diante da história. Compreendeu que era preciso renunciar ao milagre iminente da ‘revolução mundial’ e, desse modo, empreender a ‘construção do socialismo’ em um só país; e tirou as consequências dessa decisão: defendê-lo a qualquer preço como a base e a retaguarda de todo o socialismo no fundo, fazer dele sob o assédio do imperialismo – uma fortaleza inexpugnável e, com essa finalidade, dotá-lo prioritariamente de uma indústria pesada, da qual saíram os tanques de Stalingrado, que serviram ao heroísmo do povo soviético na luta de vida ou morte para libertar o mundo do nazismo. Nossa história passa também por isso. E, através inclusive das deformações, das caricaturas e das tragédias dessa história, milhões de comunistas aprenderam,  ainda que Stalin lhes ‘ensinasse’, como dogmas, que existiam princípios do leninismo.” (idem, p. 63).
A história como expressão da realpolitik staliniana. O que deveria ser explicado era, para Althusser, o que deveria ser justificado. O complexo processo de renovação filosófica liderado pelo filosofo francês atualizava o stalinismo e procurava dar-lhe uma justificativa filosófica mais sólida. Por essa razão Althusser  sempre procurou evitar a crítica ao fenômeno burocrático, limitando-se, na maioria das vezes a observações do senso comum nas quais não deixava de coincidir retrospectivamente com aquele humanismo soviético que havia criticado.
Convenha-se, se o rude interesse da burocracia soviética era o horizonte do pensamento, para que uma filosofia tão sofisticada? Se era possível chegar a essa história por meio “das deformações, das caricaturas e das tragédias”, qual a finalidade da teoria? No auge da força e influência do Partido Comunista Francês talvez fosse possível evitar essas perguntas, embora um pensamento crítico não o tenha feito. Mas, mais de vinte anos depois do colapso soviético e do irreversível declínio do comunismo burocrático, que sentido há em continuar a evitá-las? A miséria do althusserianismo original continua a ser a do neoalthusserianismo.
Referência bibliográficas
ALTHUSSER, Louis  et al. Lire le Capital. Paris: F. Maspero, 1967, 2v..
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. Paris: Presses Universitaires de France, 1969.
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu, a política e a história. Lisboa: Presença, 1977.
ALTHUSSER, Louis. Posições 1. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
ALTHUSSER, Louis. Écrits sur la psychanalyse: Freud et Lacan. Paris: Stock/Imec, 1993.
ALTHUSSER, Louis. L’avenir dure long temps, suivi de Les faits: nouvelle édition augmentée. Paris: Stock/Imec, 1994.
ALTHUSSER, Louis. Journal de captivité. Stalag XA, 1940-1945: carnets correspondences, textes. Paris : Stock/Imec, 1994a.
ALTHUSSER, Louis. Écrits philosophiques et politiques: textes réunis et présentés par François Matheron. Paris: Stock/Imec, 1997, v. 2.
ALTHUSSER, Louis. Solitude de Machiavel: edition préparée et comentée par Yves Sintomer. Paris: PUF, 1998 (Col. Actuel Marx Confrontation).
ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.
ALTHUSSER, Louis. Política e história: de Maquiavel a Marx. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BENSAÏD, Daniel. Résistances: essai de topologie générale. Paris: Textuel 1, 2001.
LENIN, Vladimir Ilitch. Collected works. Moscow: Progress, 1963-. 44v. (LCW)
RANCIÈRE, Jacques. La leçon d’Althusser. Paris: Gallimard, 1974.
STALIN, Joseph. Materialismo dialético e materialismo histórico. 3. ed. São Paulo: Global, 1982.
THOMPSON, E. P.. The poverty of theory & other essays. New York: Monthly Review, 1978.
Notas:
[1] Esse revival parece, aos poucos, chegar ao Brasil. Quase simultaneamente à França foi aqui publicada sua biografia. Alguns anos depois, foi lançada uma deplorável tradução de Sur la reprodution (ALTHUSSER, 1999). Agora, vem à luz uma coletânea de textos sobre política e história, reunindo seus cursos sobre filosofia da história e filosofia política, ministrados entre 1955 e 1972 na École Normale Supérieure (ALTHUSSER, 2007). O publico brasileiro é, entretanto, claramente prejudicado pela ausência de um projeto editorial consistente. Para quem não conheça, por exemplo, textos mais coerentes a respeito do pensamento político escritos por Althusser (p. ex. 1997 e 1998) torna-se difícil, compreender em profundidade um conjunto de notas de aula, nem sempre coerentes.
[2] Althusser cita Lenin (entre aspas) do seguinte modo: “sem teoria, não existe ação revolucionária”. A citação é equívoca por duas razões: 1) Lenin escreveu de “teoria revolucionária” destacando de antemão o nexo existente entre teoria e política, nexo obnubilado pela suposta citação em Pour Marx; 2) Lenin escreve “movimento revolucionário” e não simplesmente “ação revolucionária” destacando o caráter orgânico deste, razão pela qual a seguir faz referência explícita á social-democracia russa. Atribuir a autores aquilo que nunca disseram era prática corrente em Althusser. A esse respeito, ver a observação de Edward Thompson de que Marx nunca teria escrito que a “luta de classes é o motor da história”, frase insistentemente citada entre aspas por Althusser que lhe atribui até mesmo uma imaginária referência bibliográfica: o Manifesto comunista.
[3] Dentre as passagens mais patéticas de sua penosa autobiografia está, sem dúvida, aquela na qual descreve sua participação na reunião que votou pela expulsão de sua companheira Hèlene: “Quando veio o momento do voto todas as mãos se levantaram (…) e eu vi para minha vergonha e estupefacto minha própria mão se levantar: eu sabia há muito tempo, eu era um covarde.” (ALTHUSSER, 1994, p. 228)

Feliz navidad...

         A despeito de todo consumismo característico das festas de fim de ano, sempre é tempo de celebrar a solidariedade entre os homens. Não me interessa se o Natal foi apropriado pelo capital, como todas expressões religiosas (e as próprias religiões), tampouco me interessa saber se Cristo realmente existiu como enviado de Deus, cada qual tem seus motivos para acreditar ou desacreditar.
         Por enquanto, me interessa apenas lembrar que Cristo era carpinteiro como o pai, de origem proletária, Maria uma moça igualmente pobre. Cristo contestou a ordem social vigente, e, à sua maneira, criticou a desigualdade social e o regime opressor da época, ansiando sempre a fraternidade e igualdade entre os homens. Não há contradição nenhuma entre os anseios de um comunista como eu e os de Cristo, nesse sentido. Se em nome de Cristo mataram, torturaram e trucidaram, em nome do comunismo muitas tragédias ocorreram pelo mesmo tipo de usurpação e distorção, bem como em nome da "liberdade" (e desta última mais ainda).
          Desejo a todos um Feliz natal, em que possamos refletir qual o mundo que queremos para 2013.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Uma interessante reflexão - "A esquerda que não teme dizer seu nome", de Vladimir Safatle



A esquerda que não teme dizer seu nome – Vladimir Safatle
Capa do livro

            Terminei ontem de ler o livro “A esquerda que não teme dizer seu nome”, de Vladimir Safatle, cujo objetivo é, segundo ele, reafirmar alguns valores e renovar outros, para, a partir daí pensar a ação política. Tentarei apresentar muito brevemente e superficialmente alguns elementos da discussão feita pelo filósofo e professor da USP Vladimir Safatle.
            Confrontando o suposto esgotamento do pensamento da esquerda, que é o delírio do senso comum, sobretudo dos meios de comunicação do grande capital, Safatle é capaz de trazer diversos elementos para a discussão de como orientar a ação política de esquerda, o que se faz urgente, sobretudo num contexto de colapso do chamado “socialismo real” (que de real não tem nada), da desresponsabilização do Estado no neoliberalismo.
            Perpassando o contexto político atual, ainda que de forma superficial (mas precisa), Safatle começa a dar as pinceladas do esboço do livro, criticando fortemente o senso comum conservador, e uma certa esquerda, que quando chega ao poder começa a “ler mais sobre vinhos caros do que alienação do trabalho nas linhas de montagem da Ford”,  bem como mostrar que é “capaz de governar”, nem que seja necessário para isso ajustes fiscais que pesem no bolso do trabalhador, resgate do sistema financeiro, nada que a Europa dos últimos anos não nos tenha mostrado, o que evidentemente vai contra o primeiro princípio que deve ser sua pedra angular, a defesa radical do igualitarismo, a luta contra a desigualdade econômica.
            Uma ideia interessante que traz é a de que a esquerda seja “indiferente às diferenças”, isto é, o reconhecimento institucionalizado das diferenças (gênero, sexo, raça etc), cuja ação se orientava  no reconhecimento dessas minorias foi muito importante, entretanto, levar isto às últimas consequências culmina compreender os choques no universo social unicamente como conflitos culturais. Sugere-se então “não organizar o campo social a partir da equação das diferenças”, ou seja, a esquerda deve orientar sua ação pelo universalismo, a busca da universalização de direitos.
            Um elemento de vital importância é o de que reforma e revolução não são dicotômicas entre si, o que acarreta em equívocos na orientação da ação política. A conclusão é: é necessário “lutar por reformas sem perder de vista que processos incalculáveis podem acontecer”, quer dizer, existe uma possibilidade que é alheia ao nosso controle. Evidentemente que isso se torna mais claro com a leitura do livro.
Retomando a noção de soberania popular, e do direito à resistência, Safatle também coloca em xeque até que ponto o Estado de Direito é um Estado Democrático, afinal, nos acostumamos a nunca dissociar Direito de Justiça, o que permite pensar melhor quando existe contradição entre o consenso popular e a lei vigente, o que para os conservadores é sempre visto como ameaça à ordem vigente, e o golpe de Estado em Honduras está aí para mostrar. É certo que a Constituição hondurenha previa que não se podem fazer alterações na Constituição, mas porque temer que o juízo popular, o poder soberano do povo transforme a Constituição a fim de representar melhor seus interesses? Essa “violação política da lei” se torna, portanto, legítima e mais do que legítima necessária.
Safatle traz a noção de “Estado ilegal” para a discussão, relembrando que de Locke em diante se tem como direito do cidadão lutar de todas as formas contra a usurpação do poder, o estado de terror e a censura.
            Como consequência da “soberania popular para além do Estado de Direito” a esquerda deve, também, não ter medo de transferir o poder para os mecanismos de democracia direta, como a realização de plebiscitos, não caindo no caminho do personalismo e da centralização e muito menos na armadilha de mostrar que “sabe governar com eficácia”, fazendo concessões “necessárias” ao grande capital, como já vimos acima. Safatle atribui esse desvio ao fato de que a esquerda possui uma teoria do poder, do Estado, mas não uma teoria do governo, pois não basta o belo discurso de dizer que com vontade política se vai longe.
Filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle
            Entretanto, discordo um pouco dessa “ausência” de uma teoria do governo, mas, como estou tratando de apenas despertar o interesse pelo livro não vou tanto me ater a essas críticas, até mesmo porque seria necessário mais do que o que me propus a fazer até aqui. A esquerda, porém, raramente possui clareza em explicar como fazer.
            Além disso, Safatle também cai na mesma armadilha que uma parte da esquerda (que até possui boas ideias e boas intenções) cai, classificando Chávez como uma alternativa bonapartista e populista para a esquerda, ignorando os consejos comunales, o plebiscito, as alterações na Constituição submetidas ao juízo popular, enfim, implementação de políticas de uma esquerda que realmente não teme dizer seu nome. Vale a leitura!!

Vitória da esquerda na Venezuela!

Já que estávamos discutindo o tema uns dias atrás...


Uma rosa nunca mais desabrochou...





            Apesar de todas as críticas que tenho feito ao PT, creio ser óbvio que alguns votos em seus quadros e militantes são importantes e imperativos. É esse sem dúvida o caso de Eduardo Suplicy. Votar nele sempre significou votar em um homem íntegro, disposto a defender a classe trabalhadora, os excluídos, sendo sua bandeira a renda mínima.
            Fundador do Partido, comprometido com as bandeiras históricas, senador dos mais competentes há 21 anos, sendo criticado por meia-dúzia de imbecis unicamente porque “fala mole”, Suplicy corre o risco de ficar de fora da corrida pelo Senado em 2014, devido a uma decisão vinda de cima para baixo, para contemplar a “base aliada”, expressão que tem causado urticária em toda a esquerda brasileira. Troca-se, portanto, Suplicy ou por Netinho, ou por Chalita, ou por Kassab no Senado. Ou seja, sai Garrincha e entra Júnior Baiano. (Ver mais http://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2012/12/21/senador-do-pt-ha-21-anos-suplicy-enfrenta-a-ameaca-de-ser-trocado-por-kassab-ou-chalita/)
            Claro que Rui Falcão, carinhosamente apelidado por meu falecido tio de Rui Falsão, como bom presidente de partido pragmático apressou-se em dizer que não é bem assim etc etc. Mas o fato é que ninguém duvidaria de que o grupo majoritário do PT abrisse mão da candidatura ao Senado para contemplar a direita, que tem se tornado cada vez menos um “mal necessário”, passando a “necessidade conveniente”. De 2004 pra cá, como canta Vital Farias, “uma rosa nunca mais desabrochou”. Nos acostumamos a ver, de concessão em concessão para o grande capital e seus representantes políticos, a esquerda perdendo cada vez mais seu protagonismo nessa coalizão.
            Suplicy propôs que se realizassem prévias para escolher o candidato ao Senado, o que não destoaria das tradicionais escolhas no PT, cujo diferencial era a democracia interna. A prova de fogo para o partido e para a militância, e que nos mostrará o quanto ainda podemos ter esperanças em sua militância será que a candidatura de Suplicy seja assegurada, seja por consenso da militância, seja por meio de uma acachapante vitória nas prévias.
            Suplicy é o camisa 10 da esquerda em São Paulo.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Chávez: Continua o debate - Bonapartismo? Descontento popular crescendo?




Fiquei feliz pelos comentários a respeito do artigo sobre o Chávez que publiquei por aqui.
            Alguns amigos, camaradas trouxeram questões que só tem a enriquecer. Vou tentar dentro das minhas limitações e dificuldades teóricas e práticas desenvolver o assunto.
Bonapartismo?
            Alguns pretensos trotskistas tentam, de forma anacrônica, a caracterização do governo de Chávez com termos como Frente Popular, nacionalismo pequeno-burguês. Trotsky chamava atenção, tratando da situação do governo de frente popular na Espanha, para o fato de que “a revolução envolve os problemas políticos em sua magnitude, na sua fase atual, lhes dá a forma parlamentar”, ressaltando também a importância das conquistas democráticas para o desenvolvimento da revolução. A Espanha de 1933 não é a Venezuela de 2012, mas indubitavelmente há uma revolução política em curso na Venezuela, na qual abrir mão de se valer das conquistas democráticas implicaria no esvaziamento político desse processo social de reascenso das massas e na derrota dessa situação revolucionária.
Ora, a universalização de direitos sociais, promovidas pelas “misiones”, grandes programas de assistência que levam saúde, alimentação, educação e moradia para os setores excluídos, a realização de plebiscitos e referendos, os consejos comunales, democratização das comunicações, são conquistas democráticas, que só tem a contribuir para o andamento da revolução bolivariana, creio não ser necessário explicar aos “revolucionários” o porquê. Sem Fevereiro não tem Outubro, fazendo-me entender, sem revolução política não há revolução social.
Como diz o militante trotskista Alan Woods em “Los marxistas y la revolucion venezolana”: “Um revolucionário que não está disposto a seguir as massas, através deste processo contraditório não será em absoluto um revolucionário”, e a revolução não tem como não ser um processo contraditório, porque é dialético, o resto é sectarismo, futurologia e palpite, mas por ora, o que se tem é que este é o caminho. O Estado é um espaço de disputa pela hegemonia e, pela primeira vez na Venezuela, está nas mãos de um partido operário.
Engels passou a aplicar o termo “bonapartismo” como a ditadura militar sob a égide do capital e, como aponta Florestan Fernandes, Marx “não endossaria a transformação subsequente de um conceito histórico em um conceito abstrato e de validade geral”. Caracterizar o governo Chávez como autocrático seria o cúmulo da tentativa desesperada de adequação teórica à prática política aos moldes da III Internacional, cujos desdobramentos foram drásticos, culminando num refluxo das lutas populares. Além disso, o fato de Chávez ter convocado uma Constituinte, submetida ao juízo popular, que alterou muitas das regras do jogo burguês, elimina esse suposto caráter bonapartista.
Todo partido está sujeito ao substitucionismo e não existe uma fórmula mágica para a proteção do movimento operário, mas acho que em relação a isso os consejos comunales cumprem um papel decisivo, pois é impossível que funcione tal estrutura política sem que haja lideranças, além de outras figuras no governo que são de grande preparo político e ideológico, como Elias Jaua, Nicolás Maduro, Diosdado Cabello etc.
A candidatura de Chávez nas últimas eleições de 1999 pra cá, embora seja necessária pelo seu respaldo popular, pode acarretar num desgaste de sua imagem.
Também é presente, como ressalta o camarada Joycemar Tejo (um marxista pelo qual tenho grande apreço e me ajudou a trabalhar em cima dessa questão), que o socialismo está na ordem do dia na Venezuela. O fato são que o Estado é um espaço fundamental de disputa pela hegemonia e há um processo social ascendente em curso e as massas estão com Chávez. Os problemas de desgaste da Revolução serão tratados mais adiante.
Penso, portanto, que não seria muito inteligente da parte dos trotskistas repetirem os erros do método estalinista (reducionismo e modelos pré-concebidos).
O nacional
Um argumento no mínimo engraçado do PSTU, que justificaria o apoio a um outro candidato com palavras de ordem prontas e críticas rasas ao modelo “chavista” (que é uma abstração), refere-se a uma declaração nitidamente feita de modo irônico por Chávez de que Obama votaria nele porque ele garante estabilidade e a venda de petróleo para os Estados Unidos.
Ignora-se, aqui, não só a condição histórica de dependência dos países latino-americanos, como também um fato prático: ou a Venezuela vende petróleo para os EUA ou fecha a conta e passa a régua e abre falência, é um fruto da dialética da dependência, como categorizava Ruy Mauro Marini. Ou seja, um país da periferia que exporta um produto primário para um país do centro, que domina o âmbito das relações internacionais, e que possui tecnologia.
Nossa burguesia, no contexto das relações de produção, não tem interesses em um projeto “nacional”, exatamente porque é dependente.
Porque estou recuperando esse debate histórico? A partir desse ponto de vista, a luta anti-imperialista caminha num sentido anticapitalista. Sendo dessa desigualdade que se alimenta a reprodução do capital e a apropriação privada dos países ricos, o processo de integração da América Latina, que se dá no nível do mercado no MERCOSUL, mas em nível político na UNASUL e na ALBA, constituem instrumentos importantes para reverter essa condição subalterna. É claro que não vai ser isso que vai garantir a derrocada do capitalismo, mas é evidente que é um passo real, pois romper com o FMI e a ALCA foi uma vitória histórica de alguns países latino-americanos, é, portanto, um movimento progressivo.
Por mais que no MERCOSUL não esteja na ordem do dia o rompimento com o capitalismo, os diagnósticos de que o neoliberalismo não deu certo é hegemônico, o que não quer dizer que países como o Brasil e o Chile não adotem políticas econômicas ortodoxas.
 A integração latino-americana coloca em xeque a política imperialista dos EUA e da União Europeia. Quando do golpe do Paraguai, por exemplo, a UNASUL foi quem enviou uma comissão para averiguar os fatos, não aceitando quaisquer imposições.
As “misiones” já não são o suficiente?
            O grande trunfo das “misiones” foi o de trazer de volta ao Estado a responsabilidade em relação aos direitos sociais, o que havia sido desmantelado pelo neoliberalismo, embora a exclusão das massas da cidadania seja histórica em toda América Latina. Dessa forma, os pobres finalmente puderam ter acesso aos direitos já mencionados anteriormente.
            Evidentemente que a burguesia venezuelana (e do resto do mundo), não tardou em alertar sobre o “populismo” que estava emanando de Chávez, que “naturalmente fazia reformas sociais para se promover e se perpetuar no poder”.
            Entretanto, nas últimas eleições a burguesia venezuelana percebeu que se quisesse recuperar o poder pela via eleitoral teria de incorporar as Misiones ao seu programa político, e foi o que Capriles, de forma muito demagógica fez, sem falar nas alterações que faria caso eleito, o que na prática seria uma farra para ONG’s interessadas em parcerias muito vantajosas com o Estado.
            A oposição também percebeu que a integração latino-americana é uma fatalidade, o que não quer dizer que seja irreversível, já que a história mostra que tudo sempre pode vir abaixo, e passou a dizer que Capriles representaria a “nova esquerda”, que era o representante do modelo moderado de Lula e não o radicalismo prejudicial do “chavismo”, a despeito de ter recebido o apoio de Fernando Henrique Cardoso e, posteriormente Lula ter declarado apoio a Chávez. O que se coloca aqui é que a oposição percebeu que o discurso do “perigo comunista que está ameaçando nossa democracia no continente” funciona com meia-dúzia de jornalões oligárquicos, mas não para uma massa historicamente excluída e reprimida por esses mesmos que agora reclamam “liberdade e democracia”.
            O discurso de outrora de que "se a direita ganhar, perderemos nossos direitos sociais", entretanto, se vê comprometido. Como diz Marcelo Freixo, "a luta política é uma luta pedagógica" e nesse sentido a revolução deve continuar atuando, mostrando que não é apenas isso o que se tem a oferecer ao país, senão um projeto de médio e longo prazo.
Crescimento da oposição: apoio decrescente?
            A candidatura de Capriles conseguiu unir a maioria da oposição venezuelana que, em um processo que não é inerente às suas práticas tradicionais, por meio de prévias escolheu este ser moderado, que participou do golpe de abril de 2002 e tentou invadir a embaixada cubana, após ter cortado o fornecimento de água, além de possuir relações com o DEM brasileiro e com a secção venezuelana da TFP.
            Sendo na Venezuela o voto facultativo, o fato de 80% dos aptos a votar terem comparecido, revela que há um nível de politização alto e o fato de a oposição ter chegado a 44% dos votos, após sucessivas derrotas acachapantes se faz preocupante. Figuras que permanecem muito tempo exercendo cargos na política, tendem, com o tempo, pelo desgaste de sua imagem a perecer politicamente, e creio que aqui no Brasil temos um caso emblemático, Serra.
            O contexto em que se dá essa votação, porém, traz um elemento inteiramente novo e repentino, que aparentemente não influi, mas, pelo pouco contato que tive com estudos em relação ao comportamento eleitoral, creio ser de grande pertinência. A doença de Chávez, mas não é só a doença de Chávez, senão a campanha de medo que se fez, por parte da direita, visando colocar sua derrota como a única maneira de assegurar a estabilidade política, afinal, “se ele morrer quem vai governar?”. Em um continente marcado pela instabilidade política, que é sempre muito penosa para o povo, a estabilidade política aparece como um fator que pesa no voto.
            Isso não quer dizer, que os dirigentes da revolução bolivariana não tenham que olhar para o próprio rabo, pois nenhum processo é 100%. Surgem novos fenômenos sociais, surgem novas demandas, sobretudo quando se tem um acesso ao emprego quase universalizado. Passados 13 anos do governo bolivariano é hora de se fazer um balanço do que foi feito e começar a pintar quais serão as preocupações daqui para frente. É fato, por exemplo, que Caracas é a capital mais violenta da América do Sul, apesar das conquistas sociais, evidentemente esse é um grande desafio.
            Não creio ser possível, com o que tenho, sabendo que é muito pouco, dar um diagnóstico sobre qual a causa (embora eu creia que sejam as causas, no plural) desse crescimento da oposição venezuelana.
           
 Por ora, as massas continuam se organizando em torno de Chávez, e essa organização tem grande poder de mobilização e é isso que continua e continuará dando suporte ao projeto bolivariano. Todo passo é sempre um passo.