A esquerda da Esquerda
Lênin
já tratou em melhores termos esse setor qualificando-o como uma “doença
infantil do comunismo”. Uma das características desse grupo é o mecanicismo, ou
segundo Lênin o dogmatismo de esquerda, o que lhe dá uma feição semelhante à da
esquerda nostálgica em suas análises.
Não
se trata de fazer uma acusação nominal sobre o comportamento dessa ou daquele
corrente, desse ou daquele partido. Isso fica para os conflitos vaidosos entre
as agrupações políticas, entre os “mais marxistas”, “mais leninistas” etc.
Ao
invés de fazer a análise concreta das situações concretas, em nome de uma
pureza teórica o que se faz é uma esquematização do marxismo, que implica em
ideias pré-concebidas sobre como deveria ser a realidade e não como ela é. Esse
comportamento, mesmo que teórico, possui consequências políticas trágicas,
porque leva a um diagnóstico da realidade que não condiz com ela mesma, como se
o mundo fosse pintado com traços impressionistas. A consequência é o
imediatismo voluntarista não-marxista, não-leninista e muitas vezes de um
radicalismo pelo radicalismo, ou seja o sectarismo. O isolamento político não
se dá, porém, sem antes fazer uma política de autoproclamação, como se a
vanguarda operária já estivesse pronta neste ou naquele partido.
É o caso de
setores que se colocam contra processos essenciais para o avanço da atualidade
da revolução socialista, como a defesa anti-imperialista de Cuba, fazendo
críticas pela direita, a despeito da realidade do bloqueio econômico e do
isolamento político, que há pouquíssimo tempo vem sido rompido a duras penas.
Também se colocam contra os governos de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael
Correa, cuja feição é progressista, havendo participação das massas
organizadas, o que se viu principalmente quando forças reacionárias tentaram
derrubar esses governos, que vêm implementando reformas estruturais
imprescindíveis e acumulando forças.
Valendo-se
de algum reducionismo teórico do pensamento marxista alguns trotskistas,
maoístas e até mesmo stalinistas, qualificam esses procesos de cambio ou como uma expressão ora nacionalista e
pequeno-burguesa, ora como populista, ou, o que é pior, ora como bonapartista,
a despeito do real significado da expressão, cuja melhor explicação se encontra
em Florestan Fernandes (2012), que se apoia em Engels, para explicá-lo como um
conceito histórico e não uma categoria histórico-sociológica. Dessa forma tal
argumentação torna-se insustentável. Também se despreza as particularidades
históricas do que foi o populismo, bem como a luta anti-imperialista dos
governos Chávez, Morales e Correa – que são a expressão mais avançada da luta
pelo socialismo no século XXI na América Latina e um enorme salto qualitativo
em relação ao neoliberalismo.
Os
críticos desses processos ignoram que esses governantes chegaram mediante voto,
mas após várias mobilizações. Não se pode esquecerdo que foi a guerra do gás na
Bolívia em 2003, na qual a liderança de Evo Morales foi importantíssima; Também
o Caracazo na Venezuela; ou ainda o
levante popular que derrubou Lúcio Gutierrez no Equador, porque preferiu
abandonar seu programa de reformas democráticas em prol da cartilha do FMI.
Reforma
agrária, democratização das comunicações, auditoria das dívidas públicas,
enfim, tarefas democráticas estão sendo realizadas e em sentido progressivo e
mais, diferentemente do populismo, com participação das massas e grandes
mobilizações populares. A resistência que levou Chávez de volta ao poder no
Golpe de Abril de 2002, apoiado pelo Partido Bandera Roja, de viés stalinista,
que se associou à burguesia e aos setores reacionários das Forças Armadas nessa
empreitada, é um grande exemplo do apoio das massas e na confiança que esses
presidentes têm nas massas. Evo Morales inclusive chegou a cogitar armar os
camponeses durante a crise de 2008 para resistir à ofensiva da direita.
Entretanto,
nossa economia dependente latino-americana nos marcos do capitalismo possui
suas limitações. E mais, a execução dessas reformas, que não se opõem à
revolução, depende evidentemente da correlação de forças, que nem sempre é
favorável, o que faz com que muitas forças reformistas cheguem ao poder, mas
sem força, como é o caso de Lula em 2002. Como ainda não há revolução social,
esses processos têm sua limitação, mas não há dúvidas de que vão em sentido
progressivo. Não há revolução social sem revolução política, essa é uma das
grandes lições da história das lutas de classes. A tendência é a de que as
contradições de classe se acirrem nesses processos reformistas. O que é
importante é a formação da consciência de classe, a organização popular e a não
negativa de recorrer à insurreição para defender esses processos.
Penso que o
trotskista Alan Woods (2005) faz a afirmação mais acertada sobre o
comportamento que os marxistas devem ter em relação à Revolução Bolivariana e penso
que ela se aplica aos outros processos que são mais radicalizados na América
Latina. Além de lembrar que o marxismo nunca negou o papel do indivíduo na
história afirma que (tradução minha):
“Na ausência de um partido marxista
revolucionário de massas, as forças da revolução se reuniram ao redor de Chávez
[...] Mas não só os inimigos burgueses da revolução mostram uma absoluta
incapacidade de compreender a revolução venezuelana. Muitos de esquerda
(inclusive alguns que se denominam marxistas) demonstraram uma incapacidade
similar de entender o que está acontecendo [...] O que não entenderam é a
relação dialética [...] entre Chávez e as massas. Eles têm em comum sua
aproximação formalista e mecânica à revolução. Não a veem como um processo
vivo, cheio de contradições e irregularidades. Não se ajusta a seus esquemas
pré-concebidos de como deveria ser uma revolução e, portanto, lhe dão as costas
com desprezo. Comportam-se como o primeiro europeu que viu uma girafa e
exclamou: ‘Não acredito!’. Desgraçadamente, para nossos amigos formalistas, a
revolução não se desenvolvem suavemente, não se produz de acordo com nenhum
plano pré-concebido, não é como um ensaio de orquestra que segue a batuta do
diretor.”
Dessa forma, a esquerda da
esquerda possui erros na elaboração teórico-prática que não lhe permitem uma
compreensão do movimento real, tendo uma visão míope e imediatista. Podem até
ter compromisso com o socialismo e com a democracia, mas de nada adianta, se a
análise é feita como um culto ao empiricismo, que recorta a realidade e a isola
de sua totalidade – e há algo de pós-moderno nisso, bem como o distanciamento
da realidade. O marxismo formalista é perigoso porque acaba em vulgarização de
conceitos e categorias e na prática demonstra uma postura isolada, sectária e
que se coloca contra qualquer iniciativa que não seja dirigida por sua
corrente.
Esses desvios teóricos em alguns
setores trotskistas – não se pode afirmar que ele existe em todos, se traduz na
falsa ideia de que há capitalismo de Estado em Cuba. Não criticam, porém, o
embargo ao país, que faz com que Cuba tenha que tirar leite de pedra para sobreviver,
afinal, não se pode esperar a Revolução Mundial para que se possa comer,
estudar e viver. Desprezam o controle dos trabalhadores na produção, os
alcances do poder popular, os comitês de defesa da revolução no país. Se Cuba
não é o paraíso, está muito mais longe de ser o inferno. Essa postura ignora o
contexto imperialista que ainda é vigente.
Marini (2007) faz uma crítica à
não compreensão do caráter dialético da relação socialismo-democracia, por
setores de direita e esquerda, que não percebem que essa relação se dá por meio
de processos nacionais e suas peculiaridades culturais e socioeconômicas, bem
como a correlação de forças internacional. Não se pode cair nem no
particularismo, nem na transposição mecânica de modelos de socialismo, que é o
que pretende o stalinismo e alguns setores do trotskismo.
Bibliografia:
FERNANDES,
Florestan. O Coup de main de Luís Bonaparte in
Marx, Engels, Lenin. A história em processo. São Paulo: Expressão Popular, 2012 .
MARINI, Ruy Mauro. Socialismo e
democracia (1993) in STEDILE, João
Pedro e TRASPADINI, Roberta. Ruy Mauro Marini. Vida e Obra. São Paulo:
Expressão Popular, 2007.
WOODS, Alan. Los marxistas y la
revolución venezolana in La
revolución bolivariana. Un análisis marxista. Madrid. Espanha: Fundación
Federico Engels, 2005.
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